Muitas vezes nos deparamos com uma peça de entretenimento que nos faz refletir sobre o tempo em que vivemos. Seja uma série, filme, livro ou quadrinho. Em algumas ocasiões, essas reflexões podem ser enriquecedoras, como no conto “A Última Pergunta” de Isaac Asimov, em que somos levados a uma bela reflexão sobre nossas crenças. Em outros casos, como na série Black Mirror, vemos como a tecnologia, além de trazer benefícios, muitas vezes faz aflorar o pior do ser humano.
No entanto, existem obras que escancaram tanto as mazelas da sociedade que fica difícil não sentir um incômodo profundo enquanto se lê, e após terminar, é inevitável não ficar remoendo a história por algum tempo. Essa é Sabrina, um quadrinho feito por Nick Drnaso e publicado no Brasil pela editora Veneta.
Essa HQ conta a história de uma jovem chamada Sabrina, que vivia em Chicago com sua família e seu namorado, e uma dia simplesmente desaparece. A partir desse momento, passamos a acompanhar o sofrimento das pessoas próximas a ela, como o namorado (Teddy) e a irmã (Sandra). Porém, o foco maior da HQ é no personagem Calvin, amigo antigo de Teddy, que mora longe e para quem este pede auxílio nesse momento terrível.
O problema é que a história do desaparecimento de Sabrina viraliza pela internet, logo várias fake news e teorias da conspiração começam a surgir. Falando que nada aconteceu com ela, que os familiares e amigos são atores contratados, ou ainda que a Sabrina nunca existiu de fato.
Tudo isso parece absurdo, eu sei, porém é o que vemos ocorrendo na sociedade hoje em dia. Sejam pessoas acreditando que a Terra é plana, que o homem não pousou na lua, algumas até negando vacinas, as grandes responsáveis pela erradicação de diversas doenças seríssimas, como paralisia infantil e sarampo.
A verdade é que Sabrina mostra como essas notícias falsas podem machucar tanto quanto ou até mais do que a perda de alguém que amamos. Muitos criticam esse quadrinho por ser meio parado, não ter muita ação, ou pela arte muito simplista. Porém, a meu ver, tudo isso é intencional, desde o ritmo mais lento para construir tensão, mostrar a solidão e o incomodo que os personagens sentem. Até os desenhos simplistas demais, virando um espelho para os leitores e deixando que eles preencham as feições com as emoções que julgarem mais adequadas para aquele momento, ou seja, nós fazemos parte dessas cenas desconfortáveis e tensas.
Algo muito interessante é a forma que Nick Drnaso consegue nos incomodar. Ele se utiliza de alguns recursos muito interessantes. Primeiro, os diálogos. Durante toda a história, temos diversos diálogos que não levam a lugar algum. Muitas vezes terminam de uma forma estranha, são cheios daquelas pausas incômodas que acontecem quando aquela tia distante que você só vê no Natal uma vez a cada cinco anos aperta sua bochecha e fala: “Eu te peguei no colo e agora você está esse homão, lembra da tia?”. Isso é Sabrina.
Drnaso coloca os diálogos em painéis pequenos e quando ele usa um painel grande, coloca os personagens sozinhos, tristes ou tendo que lidar com algo traumático. Isso faz o leitor se sentir cada vez mais tenso, chegando ao ponto de desconfiar que qualquer interação cotidiana não pode ser algo bom, seja uma pessoa oferecendo uma carona ou um companheiro de trabalho fazendo uma piada de mal gosto. Nós não conseguimos confiar em ninguém.
Outra técnica muito bem usada por Drnaso é a estruturação dos quadros. Ele usa os diálogos em quadros pequenos e quando temos um quadro grande, vemos personagens sozinhos ou tendo que lidar com algo traumático. Isso vai elevando o nível de angústia e tensão, chegando ao ponto de lermos interações normais e cotidianas, como alguém oferecendo carona ou um colega de trabalho fazendo uma piada, e nos pegarmos desconfiando de tudo, como se não pudéssemos confiar em mais ninguém.
Sabrina não é um quadrinho perfeito e, provavelmente, não será a melhor leitura que você fará esse ano. No entanto, é, sem sombra de dúvida, uma das melhores leituras sobre 2020.